No projeto de me tornar um consumidor cada vez mais consciente, tenho procurado ler os relatórios de sustentabilidade publicados pelas farmacêuticas que fabricam os produtos que eu consumo. Estes dias, dediquei-me a ler os das indústrias que produzem os remédios que costumo tomar.
Os relatórios que li falavam sobre estações de tratamento de efluentes industriais, práticas de gestão de resíduos e logística reversa de embalagens pós-consumo. Falavam sobre uso racional de água, energia e controle de emissões de gases. Alguns abordaram também doações feitas às comunidades e ações sociais de voluntariado.
Ao ler os relatórios das indústrias farmacêuticas das quais sou cliente assíduo, infelizmente, não encontrei o que eu queria ler.
Nos últimos anos, as plataformas de streaming têm proporcionado um vasto cardápio de filmes, séries e documentários que mostram o quanto a indústria farmacêutica pode ser perversa – pintando de vermelho o “S” e o “G” do ESG. Aqui vão algumas dicas: Dopesick (Disney Plus), Império da Dor e Prescrição Fatal (Netflix).
Sob a influência destes conteúdos, o que eu queria ler nos relatório é que tipo de ações as indústrias farmacêuticas estão realizando para prevenir e combater que pessoas da sua organização ou cadeia de valor:
· Coloquem no mercado medicamentos que causem efeitos colaterais ou riscos ocultos, ainda que para isso tenham que forjar evidências, fraudar ou prestar informações falsas, durante as fases de pesquisa, testes e autorização (quem sabe sem a ciência da própria Alta Administração);
· Ultrapassem barreiras éticas nas relações comerciais com os médicos, promovendo estratégias de comissionamento ou outras remunerações e bonificações irregulares, estimulando que receitem e promovam seus medicamentos não autorizadas;
· Realizem ações de publicidade e marketing enganosas ou omissas, como por exemplo, ocultar riscos de abuso e dependência, associação à múltiplas patologias sem autorização e sem evidências científicas de funcionamento do tratamento para todas elas;
· Nas relações com as autoridades públicas responsáveis pela autorização, fiscalização e regulação, como a ANVISA e mesmo o Congresso Nacional e o Poder Executivo (Lobby), praticar corrupção ou suborno, para defender os interesses da companhia, em detrimento da saúde pública; e
· Praticar preços abusivos, que violem os direitos dos consumidores e o comércio justo, a partir de métodos de precificação que levem em conta só os interesses dos acionistas, e não dos demais stakeholders da companhia.
Nos relatórios que li, as indústrias farmacêuticas não enfrentaram nenhuma das questões acima com transparência. Não havia capítulos sobre os programas de capacitação dos colaboradores com foco em ética e integridade, sobre as políticas de publicidade e comércio justo, se há um canal de denúncias (ombudsman) seguro e eficaz. Consequentemente, os típicos dados quantitativos dos reportes ESG, como, por exemplo, quantidade de denúncias feitas e resolvidas satisfatoriamente, quantidade de horas de treinamento por colaborador, quantidade de autuações por órgão reguladores, também inexistem.
A ausência destes temas nos relatórios é uma evidência do quanto a indústria farmacêutica brasileira está atrasada em nível de maturidade quanto aos temas sustentabilidade corporativa e ESG, comparando-se a outros setores. Isso escancara o quanto os investidores deste setor estão expostos a riscos financeiros e reputacionais ESG, hoje negligenciados. Não há como negar que eventos como os listados acima, quando publicizados, são capazes de derrubar o preço de ações, originar processos administrativos e judiciais, e causar severos prejuízos nos resultados das empresas.
No linguajar “ESG”, os temas destacados aqui são “materiais” para a indústria farmacêutica, isto é, dentre uma diversidade de temas, são os mais relevantes para as partes interessadas – mais que o quanto foi doado para entidades assistenciais no ano ou do que quantas árvores foram plantadas no dia mundial do meio ambiente.
Não sou eu quem está dizendo isso, apenas. Fui verificar o que o mapa de materialidade do SASB – Sustainability Accounting Standards Board, uma das principais organizações definidoras de padrões para divulgar riscos e oportunidades de sustentabilidade, vinculada ao IFRS – International Sustainability Standards Board, define para o setor farmacêutico como temas materiais. Olha só:
Dos 26 temas, nenhum ambiental grifado como relevante. Dos 8 temas considerados materiais, praticamente tudo o que destacamos antes – Ética nos negócios, bem-estar do cliente, práticas de venda e rotulagem de produtos, qualidade do produto e segurança e acesso aos produtos.
Ano que vem vou ler os relatórios de novo. Espero ter uma boa surpresa e ver que a indústria farmacêutica está evoluindo. E evoluir não significa publicar um relatório mostrando só a suas coisas boas – é ser transparente e comunicar onde está em relação aos temas materiais e para onde vai, em sua jornada de melhoria contínua. Todos temos nossas lacunas e estamos no caminho juntos.
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